SENTIDOS

Orphan Lying

“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando”.

Diadorim - Grande Sertões Veredas

Esse trabalho parte de um lugar, o Laboratório Linguagem, Interação e Construção de Sentidos em Design (LINC-Design/pUC-Rio). Lugar onde afirmamos: "Como Laboratório assumimo-nos aqui como leitores-escritores de um “mundo texto” em situações de interação ou de construção de um território comum, originado nas palavras (texto)-ponte." Começo falando do LINC-Design por entender que o sentido está no centro deste trabalho, seja como forma de perceber o mundo, seja como forma de significá-lo.

Pensar sobre sentido(s) é também pensar com os sentidos. Para refletir acerca dos sentidos (sistema sensorial) de modo relacional, é preciso acionar os canais sensoriais. Escuta externa e interna de sons e relatos vividos, olhar fotografias de instantes de troca de experiência e de ações coletivas, tocar objetos guardados no armário e na memória, evocar o cheiro dos ambientes e dos cafés, o gosto dos lanches e dos bolos oferecidos e partilhados ao longo de uma trajetória. Enfim, elaborar repertórios sensoriais para dar forma às palavras e construir novos sentidos. Criar esse texto só foi possível porque ele foi vivido, imaginado e experimentado pelo corpo como forma de existência. Explorados sensorialmente como interface entre o social e o individual; o fisiológico e o simbólico; o natural e o cultural. O corpo onde a existência toma forma, afinal, "Antes de qualquer coisa a existência é corporal." (BRETON, 2006).

O primeiro entendimento que temos por sentido é de que são elementos do sistema sensorial, pelo qual percebemos o meio e que nos ajuda a planejar o agir no mundo. Quando as informações sensoriais chegam ao cérebro, ocorrem processos neurológicos que organizam as sensações do corpo e do ambiente para que, assim, seja possível a interação do corpo com e no espaço/ambiente. Este processo de organização neurológica/sensorial é chamado de Integração Sensorial (AYRES, 1972). No entanto, entre a percepção do mundo através dos sentidos, os gestos e o diálogo, trilhamos um caminho, uma vida.

Ao nascermos somos ato reflexo, desorganizados motoramente e sem repertório prévio para compreender o mundo. No começo da vida os movimentos são reflexos e reativos aos estímulos luminosos, sonoros, táteis, gustativos e proprioceptivos, provocados pelo ambiente, que chegam ao cérebro pela via dos sentidos. Aos poucos, os movimentos reflexos vão dando lugar a movimentos mais coordenados, com maior controle, intenção e organização, o desejo "de algo" nos move, como ato e como emoção. Nossas experiências começam a ganhar sentido.

As interações com o meio, com as pessoas e com os objetos que nos circundam produzem emoções e sentimentos que nos permitem apreender, elaborar e criar significados, ou seja, dar sentido, dar significado às coisas na experiência, vivenciar as interações nos acontecimentos da vida, nas e em relações. A experiência sensorial pode ser vista como um processo de transformação, pois é através dos sentidos que vivemos o mundo e criamos os sentidos do mundo. As experiências sensoriais evocam emoções que marcam vivências pessoais, circunscritas em um determinado tempo/lugar físico e histórico, mediados pelo corpo, pelo meio, por objetos e pessoas.

Não é possível pensar os sentidos apenas como condutores, pois o que é da ordem do sensível se mistura nesse processo. Assim como tangível e intangível não são compreendidos como estanques, o sistema sensorial não se constitui sem significação, pois este processo ocorre na emoção evocada. Surge, então, um outro possível olhar para o conceito de sentido: como produção subjetiva da relação sujeito/meio, dar significado às experiências e sensações provocadas pelo nosso sistema sensorial.

Toda interação (sensorial) gera algum tipo de emoção, sensação de prazer, desprazer, aflição, diversão, alegria, medo etc. Essas emoções são constituintes do que vamos construir como conceito de algo e de nós mesmos. Não interagimos com o mundo da mesma forma, independente de nossas "deficiências", “faltas” e “inabilidades”. Somos únicos e temos modos singulares de manejo das informações que nos chegam pelos canais sensoriais. No entanto, nas crianças com deficiência, por terem algum nível de comprometimento ou barreira nas vias sensoriais e/ou neuronais, as experiências com o meio estão mais restritas, pois algumas informações não são percebidas em sua plenitude e, portanto, ocorrem "ruídos" na compreensão e elaboração da mesma. Evidencia-se, assim, a pertinência de se possibilitar múltiplos modos de ação, interação e expressão para pessoas com deficiência.

Em minha pesquisa de doutorado acompanhei por 3 meses um menino de 10 anos em sala de aula, com diagnóstico de TEA. O objetivo era observar como acontecia sua interação e comunicação com o meio - amigos, espaço, professores, objetos - procurava por pistas verbais, gestuais e/ou comportamentais que me permitissem refletir sobre como aconteciam seus processos de comunicação e expressão. No decorrer dos encontros pude compreender, através de nossas interações, algumas questões relevantes da ordem da sensorialidade, não só para o projeto de pesquisa, mas para a relação com pessoas com deficiência: o valoroso lugar da observação de uma experiência sensorial. Tudo nasce do ato de prestar atenção*.

Levada pelo tempo e o desejo do menino, aos poucos, percebi que nossa relação direta era mediada por objetos, ou melhor, acontecia por meio de objetos, nossos diálogos eram estabelecidos e mediados por eles. Não haviam olhares, sorrisos e palavras diretas, isto só acontecia depois de uma consideração a respeito de algo concreto que eu carregava ou segurava, como uma chave, um livro, uma pulseira, um caderno. Sua primeira mirada era sempre sobre algo, depois um comentário e, por último, uma frase, um gesto ou um olhar (sempre de soslaio) direcionada a mim. Suas considerações eram sobre detalhes dos objetos.


Foto tirada em sala de aula, observação

Certa vez, após olhar para o livro que sua mediadora tinha colocado em cima da mesa (Ilíada, de Homero), fez as seguintes observações: olhando para a capa do livro e apontando, perguntou: o que é isso? Eu disse que era o símbolo da editora; ele então falou: “O que está escrito aqui? O que é editora? Quem é o autor?”, apontando para a capa do livro. Respondidas as perguntas ele se deu por satisfeito e voltou a olhar para frente. Fui, pela primeira vez, impactada pela quantidade de curiosidades e de como as informações visuais demandaram nele a necessidade do diálogo.

Me lembrei de meu primeiro contato com o design no curso de especialização, “O lugar do design na leitura”, e das diferentes dimensões de leitura de uma imagem – “tudo é texto!” - diziam os professores do curso. A frase ecoou em minha cabeça. Aquele “pequeno detalhe” fez sentido para o menino a ponto dele querer (desejar) se comunicar comigo. Não sei que outros sentidos foram construídos a partir dessa leitura, mas pude vivenciar a primeira intenção de diálogo com a participação ativa dele e, também, a percepção de que a imagem tinha um espaço importante nesse percurso.

Posteriormente, me deparei com suas estereotipias (movimentos repetitivos que ajudam as pessoas com TEA a organizar os excessos de estímulos). Consegui perceber que estas aconteciam quando o barulho em sala de aula era alto, pois ele automaticamente fazia movimentos com os dedos das duas mãos (indicador e anular) repetidamente. Esse comportamento é comum em pessoas com transtorno de integração sensorial, são movimentos de auto regulação, ou seja, é através dos movimentos repetitivos (corporais e/ou vocais) que eles se organizam internamente. Me pareceu precioso que uma informação sensorial, o som em excesso, gerasse uma demanda sensorial para que houvesse uma espécie de equilíbrio sinestésico.

Até aqui já havia percebido que: a imagem era relevante para ele (olhar), o excesso de som (audição) era incômodo e que os movimentos corporais (propriocepção) o "aclamavam". Porém, ao longo do tempo compreendi que a relação entre os sentidos (sistema sensorial) e seus modos de construir sentidos (significá-los) era complexa. Ao mesmo tempo em que o barulho excessivo o desorganizou, com o tempo, percebi que ele buscava por experiências sonoras/auditivas, por mais de uma vez pediu para tirar foto com meu celular e colocava o ouvido para escutar o clique da foto. Sua demanda por experiências sonoras se deu de modo mais expressivo quando, fazendo uma atividade com ele que envolvia recorte, por várias vezes, ele aproximava a tesoura do ouvido ao cortar. Ao ser questionado sobre a razão desse comportamento me disse que a ação "fazia um som", demonstrando ter prazer em ouvir o barulho da tesoura cortando o papel. Já instigada por sua necessidade de experiência sonora, que denominei controlada (ele não era invadido por ela, ele a buscava), comecei a observar que, ao contrário da imagem, que suscitava diálogos, estas eram experiências que ele não compartilhava mas que pareciam prazer sensorial, como em uma experiência estética.

Construí um dodecaedro (imagem abaixo) para que ele pudesse trabalhar frações, sua dificuldade, e para que ele se interessasse pelo objeto levei peças que faziam do dodecaedro um mapa mundi, seu assunto de interesse. Ao ver o objeto, imediatamente falou que era um pentágono, perguntei como ele sabia disso e ele me disse que o objeto tinha cinco lados. Mostrei as peças do quebra-cabeça, ele olhou e disse que era um mapa do mundo e foi pegando as peças, sem me perguntar o que era para ser feito montou o quebra-cabeça muito rapidamente. Este fato chamou minha atenção, pois se tratava de um quebra-cabeça tridimensional que exigia habilidade por parte de quem o manipulasse, pois era necessário deslocar o olhar e mudar seu ponto de vista, a fim de que as peças pudessem ser encaixadas. Após a montagem, mostrou os países que conhecia e os oceanos. Mais uma vez, demonstrou seu interesse pelo assunto e, como esse comportamento era disparador de comunicação, o objeto o ajudava na interação com o outro. Depois que demonstrou já ter explorado o assunto, retirei as peças e perguntei a ele o que mais o objeto poderia ser. Ele me respondeu que poderia ser o planeta Marte. Neste momento, apresentei os papéis coloridos que havia levado e a tesoura; ele sorriu, pegou o vermelho e disse que era a cor de Marte, colocou a caneta sobre o "planeta" e me disse que era um foguete. Mais uma vez o que eu suspeitava estava acontecendo, através de seus desejos e interesses ele criava significações diversas, contrariando a máxima do "pessoa com TEA não é capaz de simbolizar".

Ao final, já dando fim às atividades, sem que eu falasse ou propusesse nada, ele pegou os dois domos do dodecaedro e colocou um em cada ouvido, como se escutasse algo (imagem abaixo). Fiquei observando o momento, sem saber exatamente o que significava, ele não demonstrou vontade de trocar comigo sobre o que estava acontecendo, estava imerso em sua experiência e exploração sonora. Ao se dar por satisfeito com a situação quis voltar para sala de aula, dando fim ao encontro, ele apenas levantou e saiu.

Ilustração José Urbina

Nunca vou saber o que aquela vivência resultou internamente para ele, e nem deveria, não era desejo dele compartilhar. No entanto, sei o que resultou em mim enquanto pesquisadora, designer, fonoaudióloga e pessoa; o valor da observação do desejo do outro, do estar em relação; a importância de se observar uma experiência e de se proporcionar espaços e modos diversos de vivenciar as experiências.

Quando construímos espaços e relações em que o sujeito enxerga a possibilidade de se comunicar e se expressar a seu modo, de experimentar o mundo, estamos criando a oportunidade de haver troca, compartilhamento e diálogo. É através da linguagem que nos constituímos enquanto sujeitos, no espaço entre o ir e vir dos verbos que nos colocamos em ação, construímos nosso entendimento de mundo e de sujeito. O lugar da ação nos possibilita experiências que alargam nosso repertório e nos tornam seres capazes de produção.

Quando colocamos a concha no ouvido para "ouvir" o barulho do mar, experimentamos uma experiência única, mágica, que é íntima e individual, mas carrega toda a imensidão do significado da palavra mar.